sábado, 8 de agosto de 2009

Cidades Parnahybanas [Capítulo Sete]

Suponho ter visto o coração negro de Parnaíba. Saía para mais uma caminhada noturna. Cruzava caminhos sem razões aparentes, sob mil tentações desconhecidas, quando, a poucos passos da Praça Santo Antônio, ele surgiu, condensando sobre o asfalto. Pensei em como poderia registrar aquele momento. Fiquei alguns segundos parado, olhando o coração negro das enchentes, das vias mal-cuidadas e cheias de buracos, da apatia transmitida de uma lanchonete próxima, da iluminação pública precária em muitos pontos, do mau cheiro exalado dos bueiros na área comercial. Fiquei parado, tentando me antecipar a ele. Fez-se por ser visto? Cresceria a ponto de englobar tudo a sua volta e entregar ao mundo uma tristeza sem retorno? Continuei então, olhando de viés para trás, e, embora não o avistasse mais, sentia sua aproximação. Nos arredores do cajueiro do Humberto de Campos, com sua poesia abandonada e placas arruinadas, previ que seria alcançado. Tentei correr, mas não fui longe. O cemitério, dois quarteirões adiante, jogou-me num labirinto de certeza e dissolução. Ele me perseguia por não saber a que vim: se disputaríamos presas. Foi com remorso que varri com o olhar em fuga as casas e lojas numa extensão reconhecível da sua lentidão, no seu silêncio. Apreendendo sua consumação nas chances óbvias, no prazer acanhado de horizontes estreitos. Quase de joelhos, pedindo perdão e apontando no destino um traço inexorável que minha vista não apurava mais. Nunca antes me senti tão desconectado da realidade que imaginava dominada. Privado de referências. O negrume compassado dissolveu-se então, agora seguro da minha contradição, nas conversas dos bares nos arredores, nos namorados que saíam da aula. Havia, pois, essa mancha feita na atmosfera presumida. Havia; há.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Cidades Parnahybanas [Capítulo Seis]

Passa a noite passa na sua pressa, leve como a neblina a sublimar sob o sol iridescente; sob o contorno dos nasceres no dia. Passa o fiapo da noite para seu esconderijo pelas próximas horas, guiado pelo cheiro morno e agridoce que ascende do quintal. Esse cheiro de manhã, denso e quase palpável, trazido pela aragem que sobe muros e invade casas sem cerimônia, me embriaga e me deixa tonto e cheio de uma esperança sem rumo que se arrasta pelos braços, quedando na janela, de onde aspiro meu futuro. Toda hora é uma promessa, toda hora é uma vida ou se não. Minhas horas prediletas, ah, minhas horas prediletas levantam-se imberbes, despertadas pelos cachorros vadios que ladram da esquina; pelas ofertas do vendedor de bolos e cuscuz que cruza intermitente na sua bicicleta o último bairro temporal da cidade. E a coloração do céu, indo da influência de raios fugazes que tingem o mundo com um violáceo aveludado para o mais puro azul ainda sem nuvens em questão de minutos, minutos que atravessam minha janela sem pesar. Porque tudo é bom e imaculado nos instantes cheios da prenuncias do dia nascente; porque tudo é inundado por surpresas meio vagas como se estivéssemos presos ainda no sonho da véspera.

Cidades Parnahybanas [Capítulo Cinco]

À claridade da lua, o quintal silencia-se por alguns minutos. Logo o vento sopra outra vez, farfalhando nas mangueiras. A paisagem que assoma à minha frente remete ao mito da solidez familiar. Sinto o impulso nostálgico que me prende a esta casa, onde morei os primeiros dezessete anos da minha vida, em Parnaíba. A segurança e reconhecimento do domicílio abrandam a inquietude do mundo lá fora. Tornam-a mais remota. O vento, agora mais forte, avança sobre os galhos mais altos, derrubando uma manga madura, que cai dentro do tanque, num baque seco. Na infância, o espanto que o impacto da queda provocava dentro de casa me aludia a rompimentos da existência conhecida, da continuidade diária, enchendo o espírito com o receio de mudanças ao alvorecer seguinte. Quando à noite então, na plenitude de seus mistérios... Buscava coragem para ir ao quintal e me certificar do que tinha acontecido, mas desistia. Preferia adivinhar na imaginação o verde-escuro da ramagem entre saltos ligeiros, pacífico com a natureza que integrava. Os troncos de ambas as árvores são sólidos e espessos. São eternos, encarnando a sabedoria de uma velhice secular, que indica nas mudanças ao redor a fragilidade de sua permanência. Rendo homenagem ao antepassado que as plantou, haja vista a casa pertencer à nossa família desde sempre. A casa, incrustada de felicidades e tristezas coletivas ou pessoais que foram se sobrepondo com o tempo ao seu inventário sentimental, me faz pensar no que vivi aqui, no que se passava no meu interior e exterior. Crenças e perspectivas. Costumava ler sentado a um canto da sala, dando forma a desejos e anseios que só viriam de fato bem depois. Mergulhava nos livros perscrutando uma vivência paralela, que competisse com o espectro que as tardes na casa me trazia, em sua presença assustadora, por indefinível. Foram os primeiros acordes de um plano que não supunha real o suficiente. Agora, a lua, ampla sobre o telhado, me recorda essas lições de partida. Afinal, uma década atrás, ficava na penumbra para mirá-la vistosa no céu, distraído nos nuances de uma idéia inventada: deixar tudo e rumar para o infinito da audácia, prendendo-se apenas ao necessário, cobiçando novas investidas, apropriando-me de outros lugares, mesmo que imaginários. Tantos anos depois aqui volto, alimentando a memória com minhas raízes. E tudo retorna como um fantasma a expor surpresas já sabidas, envelhecidas na melancolia do abandono. O que esse fantasma pensaria de mim agora? Como reagiria às minhas realizações, a tudo que efetivamente fiz? Súbito, sinto-me ensimesmado, constrangido. Talvez algo falte. Talvez não tenha alcançado minhas próprias promessas. É como encarar um espelho. A casa, santuário do passado, volta seus olhos para meu presente.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Cidades Parnahybanas [Capítulo Quatro]

Observava, do porto, o rio barrento, seduzido pelo rumor das águas. Na ponte as pessoas paravam de quando em vez e olhavam para baixo, assustadas. O rio sobe há semanas, prenhe das chuvas. O cais antigo ainda em movimento, com pessoas saindo dos barcos em silêncio. Disseram por perto que o volume era ainda maior, e que abaixava lentamente. Parnaíba se rendia ao rio, irmão gêmeo a tolher pessoas em suas casas com a enchente. Há muito já não se dependia dele para viver, vender, viajar. Os mais velhos ainda resmungam sobre o tempo em que ali, no porto, girava a renda e o futuro das gentes. Hoje está tudo perdido - perdido. Canoas saem sem brumo para a pesca pequena, barcos para o passeio de turistas, e o resto se move por outro meio. Às vezes encontro em Parnaíba esse encantamento de cidade ribeirinha muito próprio da região do Amazonas, quando tememos, mesmo que por instinto, o dia em que as águas desafiarem o homem e tomarem a sua terra, subindo numa paciência sem tempo; chamando o homem para si e o escondendo no leito de lama, absorvendo, inalando, até que sejamos rio também.

Cidades Parnahybanas [Capítulo Três]

Falar da minha cidade? Tento: mas ela me escapa das mãos, da memória, da imaginação. A cidade que espelha água. A água turva do rio, fugindo para o mar. Sei que minha cidade não cresceu como esperava. Permaneceu tímida pelos limites da vida, e ficou a perder muitos de nós nos últimos anos. Onde Parnaíba me cabe? Ando pelas ruas, vejo alguns rostos conhecidos, o céu limpo da terça-feira, e me prendo na sugestão de que desviei-me do caminho, que de algum ponto já não passo mais. O sentimento dessa gente me estranha, talvez me rejeite como filho da terra. Filho fugido. Penso o que me posso fazer de Parnaíba.

Cidades Parnahybanas [Capítulo Dois]

Olhava para o céu opaco de julho enquanto caminhava entre os carros. O mesmo percurso de antes, mas eu não me sentia igual. Olhava para os nomes estranhos que agora ocupavam as fachadas dos prédios velhos do centro e tentava encaixar o meu passado na retina, como se pudesse sobrepor a memória a tudo o que via. E assim a cidade foi perdendo o sentido, até se desfazer numa sombra formada de sua própria história. Os anos traçavam minha imaginação e mais longe eu fui, onde não existia objeto ou causa: o estigma dos desafortunados, arrastando-se pelas ruas. Não percebia o espaço que ocupava, anulado pela pressa com que desviavam-se de mim. Parecia que todas as vidas eram tão urgentes... Desesperadamente necessárias para esse universo compacto que tentei assimilar por algumas horas. Mas qual sentido havia nessa busca de um passado que se alterou quantas vezes eu o perscrutava? Não seria na velha loja de tecidos que permanecia inalterada, como uma relíquia dos tempos, entre duas praças, que encontraria minha verdade. Seria talvez longe daqui, em algum lugar onde eu ainda faça parte do processo. Algum lugar de lugar nenhum?

Cidades Parnahybanas [Capítulo Um]

Por onde ando na cidade, nas ruas e calçadas, a sombra de meu passado ladeando a minha frente, como um cão farejando o perigo para proteger o seu dono, por onde passo e deixo no caminho um pouco de mim, que se prende nas paredes e no chão, uma marca, uma marca. Por onde respiro o ar morno da cidade, o aspecto cansado das praças, o jeito silencioso com que todos saem das lojas, o ruído vindo apenas do centro, a igreja matriz com a missa quase vazia, os carros desviando dos buracos, os buracos cada vez maiores, o céu cada vez mais escuro, a cidade cada vez mais dentro da noite. Por onde olho vitrines apagadas e manequins despedidos, bancas de jornal fechadas, bares se enchendo, empregados com farda apressados para pegar o ônibus, pegar o rumo de algum lugar, pegar o sossego longe das ruas desertas de movimento, apenas com outros funcionários alimentados pela mesma pressa, livres de sorrisos forçados, livres do emprego por uma noite, livres de uma parte de suas vidas. Correm todos para a segurança da luz do poste, da firmeza do poste, da urbanidade do poste, constante, acompanhado por outros postes, levando para a parada de ônibus. Por onde adivinho traços esquecidos da cidade que foi outrora, das reformas mal-sucedidas de vias públicas, das casas derrubadas, das casas construídas, dos prédios levantados, dos prédios abandonados, dos reformados, dos esqueletos de prédios, fantasmas que permanecem imóveis mesmo à luz do dia. Por onde então Parnaíba, a cidade que começa a adormecer.